Apesar do
senso comum insistir no Tupi como única língua existente, sabemos que não é bem
assim que funciona a dinâmica das línguas indígenas no no nosso território. As
tribos indígenas podem ser estabelecidas como civilizações que possuem sua
própria língua.
O texto
abaixo de autoria da professora Ceci Maria Aparecida Honório demonstra a dinâmica da
questão das línguas indígenas e o território nacional. Nesse assunto é sempre
retratado a questão da colonização nacional, o contato entre etnias e a
história do nosso país, a documentação das línguas e a Linguística.
O texto
foi retirado do link: https://br.groups.yahoo.com/neo/groups/etnolinguistica/conversations/messages/1562
Desde as primeiras publicações sobre
o tupinambá ou tupi antigo, entre as quais destacamos a Arte de
gramática da língua mais usada na costa do Brasil – obra do Padre
Anchieta datada de 1595 –, outros estudos descritivos foram sendo produzidos,
sustentando sobretudo os trabalhos de tradução da literatura religiosa nesta e
em outras línguas indígenas. Os relatos de missionários e viajantes da época
passam a constituir, por outro lado, material de base para a elaboração de
dicionários bilingües (português/línguas indígenas) e para a construção de uma
historiografia brasileira. Destes estudos decorrem outros subseqüentes,
compondo um vasto conjunto de documentação sobre as línguas do Brasil, hoje
diluído em alguns arquivos públicos ou incorporado a acervos, na forma de
"coleções".
Vamos nos centrar aqui no modo
de organização de dois arquivos que, ao lado de outros não menos importantes,
estão representados como centros de referência para pesquisas em línguas
indígenas. Trata-se do antigo acervo de Plínio Ayrosa, atualmente incorporado
ao acervo do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia da USP), e da Coleção
Línguas Indígenas do Brasil, que hoje integra o Cedae (Centro de Documentação
Cultural Alexandre Eulálio), no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da
Unicamp.
Queremos mostrar que o arquivo
tem uma direção: o gesto de organização de arquivo, ao incorporar um documento,
rejeitar outros, exerce um determinado controle da memória social, projeta
leitores possíveis nos acontecimentos de linguagem. Assim, tais arquivos tornam
ou não visíveis certos saberes acerca, neste caso, das línguas do Brasil. O
acesso a este tipo de conhecimento não se dá, pois, pelo mero fato de o arquivo
ter uma existência real. E sim pelo processo histórico de sua constituição,
modo de constituição de saberes. Deste ponto de vista, o arquivo é, ao mesmo
tempo, lugar de constituição e de institucionalização destes saberes. Lugar de
regulação do conhecimento, que, portanto, não é neutro.
Plínio Ayrosa: pesquisa e divulgação
Em 1934, introduzindo a
cadeira de Etnografia e Línguas Tupi-Guarani na Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras da USP, Plínio Ayrosa passou a se dedicar aos estudos do
tupi, vindo a fundar o Museu de Etnografia que levou seu nome. Neste arquivo
estão organizadas documentações coordenadas, prefaciadas, comentadas ou
traduzidas por Ayrosa, referentes aos trabalhos lingüísticos de missionários e
viajantes: relatos, vocabulários, dicionários bilingües (português-tupi),
literatura religiosa (orações, catecismos, diálogos, poemas etc). De sua
autoria são também os estudos dos designativos de origem tupi-guarani
empregados na língua portuguesa do Brasil, encontrados nos relatos de
missionários, viajantes, na literatura alencariana, na perspectiva geográfica
(toponímias) e etimológica.
Ao organizar um certo saber
sobre o tupi, o arquivo cria condições para uma maior visibilidade dessa língua
no país, pela veiculação deste conhecimento na imprensa. Grande parte desta
produção foi publicada, principalmente no Arquivo Municipal de São Paulo e no
jornal O Estado de S.Paulo. Já em 1933 o autor havia publicado suas
"Primeiras noções de tupi" no Diário Oficial do
Estado de São Paulo.
Este modo de circulação de
saberes, que apresenta a língua tupi como "a língua indígena", produz
um certo controle da memória social acerca das outras línguas faladas no Brasil
Colonial, ao mesmo tempo em que contribui na construção de um imaginário de
língua indígena. É importante lembrar que a língua representada neste arquivo
corresponde ao tupi gramatizado, ou seja, aquele que resultou da sistematização
das línguas da família tupi. Desse trabalho de gramatização feito pelos
jesuítas, resulta também outras obras escritas em Tupi: poesias, teatro,
compondo a literatura religiosa. A formação deste corpo lingüístico assim
organizado produz um estatuto diferenciado a esta língua relativamente as
outras línguas indígenas faladas no país: o tupi antigo passa a funcionar como
língua de transição entre culturas. Torna-se, ao lado do latim, língua de
catequese, lugar de possibilidade da expansão da doutrina católica e do projeto
colonialista.
Coleção de línguas
Passemos agora ao arquivo
organizado pelo professor Aryon Dall'Igna Rodrigues, em um trabalho mais
recente. O arquivo, que compõe a intitulada "Coleção Línguas Indígenas do
Brasil", foi criado em 1973, no Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da
Unicamp, por iniciativa do professor. Nele constam, quase que exclusivamente,
documentos produzidos por missionários do SIL (Summer Institute of Linguistic).
Tendo iniciado seus trabalhos no país na década de 50, auge da lingüística
sincrônica, o Summer produziu um volumoso material descritivo sobre as línguas
indígenas, relativamente a outros estudos de lingüistas brasileiros. A serviço
das Novas Tribos do Brasil (igrejas fundamentalistas americanas), no que
concerne à tradução do novo testamento em línguas indígenas, para evangelização
dos povos que as falam, divulgou seu Arquivo Lingüístico, com sede própria em
Porto Velho (RO), com algumas instituições (científicas ou não), sendo acolhido
também em centros de documentação, tais como o da Funai e o do Museu Nacional,
duas grandes referências sobre o assunto, só para se ter uma idéia.
Os documentos pertencentes a
esse arquivo se dividem em estudos sincrônicos, vocabulários, dicionários
bilingües, textos indígenas, vocabulário padrão para estudos comparativos nas
línguas indígenas brasileiras. Há também os textos indígenas que incluem temas
do cotidiano, lendas, sendo muitos destes textos com tradução bilingüe não só
na língua indígena/português como também em língua indígena/inglês. Levando-se
em consideração a presença de muitos missionários-lingüistas em área indígena
já há mais de 40 anos, chama-nos a atenção o fato de que grande parte do
material lingüístico que compõe o arquivo se apresenta em versões incompletas e
rascunhadas. É relevante ainda notar que o trabalho de tradução do Novo
Testamento, embora bastante representativo em termos quantitativos, não
consta da Coleção do Cedae – à exceção da documentação referente à língua
catalogada como Mawé (Sateré), em que se encontram os textosQuestions on God e Sateré
biblie terms, em inglês e sem data. Segundo dados da Associação das Missões
Transculturais Brasileiras (AMTB, 1999), já foram traduzidas ou estão em
processo de tradução para as línguas indígenas cerca de cinqüenta bíblias, o
que significa que mais de um quarto das populações indígenas brasileiras já têm
o Novo Testamento na sua língua.
O procedimento que exclui este
tipo de texto religioso por aporte do SIL, ao mesmo tempo em que controla a
cientificidade do arquivo, restringe o acesso aos processos históricos que
determinaram sua constituição. Esse procedimento se faz tanto explicitamente,
negando-se ao texto a sua inclusão no acervo, quanto implicitamente, pelo modo
de categorização deste arquivo – intitulado Línguas Indígenas do Brasil –
que não refere o SIL no processo de sua nomeação. Este gesto de leitura
acoberta o discurso religioso pela transparência do discurso científico. Além
disso, a incorporação de alguns poucos textos/artigos relativos a estudos de
pesquisadores brasileiros, dos quais destacamos o do próprio professor Aryon
Rodrigues, e de um missionário salesiano, o padre Casimiro Beksta, parece
favorecer a legitimação deste arquivo como um outro, que não corresponde ao
arquivo do SIL. Rejeitar alguns, incorporar outros. Gesto de leitura que
implica responsabilidade.
Institucionalização de saberes
Como vimos, a visibilidade de
um certo tipo de produção lingüística como trabalho científico se constrói pela
própria instituição que acolhe este arquivo. Constata-se a utilização de dados
do arquivo do SIL fundamentando trabalhos acadêmicos concernidos ao estudo das
línguas indígenas. O livro de Aryon Rodrigues, Línguas Brasileiras –
para o conhecimento das línguas indígenas, referência bastante
significativa nos cursos de Lingüística Indígena e/ou Lingüística
Antropológica, como são chamados, apresenta também ampla divulgação do material
produzido pelo SIL, tendo em vista a escassez de trabalhos científicos
concernidos por lingüistas brasileiros especializados na área até a década de
70.
Outro aspecto relevante a ser considerado no processo de constituição do
arquivo é que no próprio momento em que ele se organiza para exercer também um
papel na divulgação de seu material, ele projeta alguns leitores possíveis:
"As equipes do SIL estão preparando para arquivamento e possível futura
publicação, coleções de textos indígenas em formato interlinear com análise
morfêmica e tradução livre. Este material será de grande interesse para
etnólogos (o conteúdo dos textos) e lingüistas (a gramática dos textos.)".
Sem nos esquecer da projeção de um outro leitor: aquele que domina a língua
inglesa. Muitos desses estudos estão escritos nesta língua.
Este gesto de organização
produz um efeito de regulação do trabalho de leitura de arquivo: quem deve ler
o quê? A memória desses saberes fica assim reservada a certos especialistas.
Um outro lugar de divulgação deste tipo de produção científica, não
caracterizado como instituição acadêmica, tem sido as OGNs que desenvolvem
projetos com as comunidades indígenas. Através da mídia eletrônica,
particularmente a internet, o Instituto Socioambiental (ISA), por exemplo,
apresenta em seu site o item "Quadro dos Povos", uma classificação
atualizada (setembro/1997) das línguas indígenas baseada na revisão do
livro Línguas Brasileiras – para o conhecimento das línguas indígenas,
do Prof. Rodrigues, já referido. Quando consultamos ainda o Arquivo da Funai,
em seu site, encontramos somente a indicação de pesquisa:
"Consultar o livro de Rodrigues acima citado". É interessante notar
que justamente o hipertexto, que simula "abrir" muitos arquivos,
funciona de modo a dirigir o movimento do leitor sempre para o mesmo arquivo. O
movimento entre "o dado" e (aquilo que aparece como) "o
novo", ao mesmo tempo em que amplia as possibilidades de acesso aos saberes,
pela sua introdução em outros suportes de divulgação, produz os mecanismos de
seu controle, re-apresentando o que já se encontra autorizado.
Cientificidade e controle da memória
Mais do que uma divisão de
trabalho de arquivo, organizada por critérios acadêmicos de divisão dos campos
do saber, a filologia, de um lado, e os estudos sincrônicos, de outro, a
constituição dos arquivos apresentados deixa antever a determinação do discurso
religioso sobre o discurso científico. Neste modo de circulação do saber,
observamos um movimento que transforma/dissimula o trabalho missionário de
evangelização em trabalho científico, garantindo-se um espaço de idoneidade e
neutralidade política.
Neste processo, lembramos ainda que o trabalho de classificação das
línguas, e, conseqüentemente, classificação dos povos, foi e continua sendo
instrumento útil no controle da diversidade lingüístico-cultural no país, tanto
por agentes internos quanto externos. Podemos referir aqui o levantamento
realizado pela já citada AMTB, denominado A situação das tribos
brasileiras, que mapeia o "número de tribos, situação quanto à
distribuição da população" e categoriza os povos em três tipos: "Povo
A – Grupo etnolingüístico não evangelizado", "Povo B – Grupo
etnolingüístico evangelizado, porém não-cristão", e "Povo C – Grupo
etnolingüístco cristão", classificação que servirá para a planificação das
ações evangelizadoras.
Diante das reflexões apresentadas, perguntamos: que saberes podem ou não
ser disponibilizados, ou seja, de que perspectiva se organiza esse arquivo?
Podemos dizer que o trabalho de classificação, de categorização, enfim, a
prática metodológica, ao organizar formalmente um campo da documentação, produz
uma certa assepsia no processo de construção do conhecimento, selecionando e
reorganizando um campo de memória, a partir de uma certa conjuntura histórica.
Do nosso ponto de vista, é preciso
que a organização dos "dados" lingüísticos funcione não como um
depósito de informações materializadas nos documentos, mas como um espaço de saber
organizado pela relação entre diferentes memórias que compõe o social. Relação
que, ao movimentar o arquivo, produz sua significação histórica no
acontecimento de linguagem.
Línguas e a história no Brasil
Acompanhar uma parte do processo histórico
de construção destes arquivos nos leva a dizer, sobre estes arquivos, os quais
constituem um campo de saber, que, ao distribuir a palavra, numa certa medida,
ora para um Deus católico, que legitima o tupi como língua que saiu da
barbárie, ora para um Deus evangélico, que proclama a salvação de todos os
homens pela tradução do "testamento", legitima estes discursos em
nome da ciência. Neste espaço de constituição de saberes, a imagem de um
arquivo, significado como depositário de um conhecimento científico sobre as
línguas indígenas, naturaliza e neutraliza as próprias línguas e seus falantes,
pelo apagamento do processo de sua constituição.
Queremos chamar a atenção para o fato
de que esses arquivos têm uma histórica, que tem a ver com a história da
constituição das ciências e a história das sociedades. Do nosso ponto de vista,
a ciência deve se colocar como um espaço democrático de circulação de
conhecimento, espaço que se configura não só de alianças mas também de
confrontos.
Da perspectiva dos estudos
lingüísticos, consideramos que o entendimento do "espetáculo" dos 500
anos de Brasil se faz pela memória histórica dos povos que o geraram. E não de
sua exclusão.
Sobre a
autora:
"Atua no curso de Graduação e Pós-Graduação do Departamento de Letras da Universidade Estadual de Maringá, É doutora em Lingüística pela UNICAMP e desenvolveu programa de pós-doutoramento na USP pelo projeto História das Idéias Lingüísticas no Brasil: ética e políticas de línguas, através do convênio BRASIL/FRANÇA CAPES/COFECUB/ENS. Desenvolve pesquisas na área de Análise de Discurso (linha francesa), desde 1993, e, a partir de 1996 integra seus trabalhos também à linha História das Idéias Lingüísticas no Brasil, procurando compreender o processo de construção de identidades no Brasil, tendo em vista as práticas discursivas de inclusão/exclusão dos sujeitos e das línguas, em diferentes materialidade (verbais e não-verbais). O foco central de suas pesquisas é a reflexão sobre os processos de subjetivação e construção de identidades, considerando contextos multilíngües e multiculturais. A temática da inclusão/exclusão de sujeitos e sentidos tem sido também articulada à problemática da construção de políticas públicas de inclusão. Analisa documentos históricos, oficiais e material de campo produzidos pelas comunidades indígenas brasileiras desde 1996. Participou, no período de 2000 a 2002, do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFSCar, promovendo estudos relacionados à práticas discursivas de discriminação e produção de identidades. Atualmente, integra os seguintes Grupos de Pesquisa CNPq: ““Enciclopédia das Línguas do Brasil” (UNICAMP/LABEURB); “NECOIM – Núcleo de estudos da Cultura, Oralidade, Imagem e Memória no Centro-Oeste” (Unb)." |